A crise duradoura nos hospitais federais do Rio de Janeiro foi responsĂĄvel pela exoneração, em menos de 24 horas, de um secretĂĄrio e um diretor do Ministério da SaĂșde.
Um deles é um nome importante na gestão pĂșblica da saĂșde brasileira: Helvécio Magalhães, secretĂĄrio de Atenção Especializada à SaĂșde (SAES).
O outro, Alexandre Telles, seu subordinado, era responsĂĄvel direto pelos hospitais federais, chefe do Departamento de Gestão Hospitalar (DGH) no Estado do Rio de Janeiro.
O fato é que, quinze meses após o começo do governo Lula, pouco havia sido feito para reverter os anos de sucateamento daqueles hospitais, que atendem não apenas o estado do Rio de Janeiro, mas todo o Brasil, e são referĂȘncia em alta complexidade.
As causas do declĂnio são mĂșltiplas, mas entre as principais estão o subfinanciamento prolongado do SUS e as dezenas de irregularidades encontradas reiteradamente na gestão dos hospitais.
A crise começou assim que o Ministério da SaĂșde tentou mexer nesse vespeiro. Desde o inĂcio do mandato, a pasta vem fazendo relatórios que atestam as péssimas condições em que se encontram os hospitais federais.
Na nota técnica mais recente, o DGH lista as "fragilidades e irregularidades no âmbito da contratação de serviços continuados".
Dizem respeito a todo tipo de corrupção ordinĂĄria, mas sobretudo indicam favorecimento de empresas sem justificativas técnicas e contratações e aquisições com preços acima do mercado.
Essa nota técnica serviu de justificativa para a publicação de uma portaria que centraliza as compras feitas pelos hospitais federais no órgão do Ministério da SaĂșde. O DGH justificou que isso traria eficiĂȘncia e redução de custos, além de basear-se na nova Lei de Licitações de Contratos Administrativos.
A mudança deveria começar a valer no dia 14, mas a pressão sobre NĂsia Trindade foi tamanha que a ministra decidiu adiar em mais um mĂȘs a medida. Mesmo assim, os ânimos continuaram aflorados, dando sequĂȘncia a uma série de eventos temerosos.
Para responder à pressão contrĂĄria à centralização de compras, NĂsia tomou uma decisão que é vista como intervenção nos hospitais.
Na sexta-feira, 15/3, criou um ComitĂȘ Gestor que ficaria a cargo da gestão da rede durante 30 dias, e seria comandado pelo então secretĂĄrio Helvécio Magalhães.
Começaria a atuar na segunda. Mas no meio do caminho havia uma matéria do FantĂĄstico. O jornal dominical fez uma reportagem extensa em que denunciava o estado precĂĄrio dos hospitais federais do Rio de Janeiro.
Entre as denĂșncias, despontou o nome de Helvécio, que enviou uma pessoa sem cargo pĂșblico, ligada a uma empresa prestadora de serviços à SaĂșde, para averiguar a situação predial no hospital de Bonsucesso.
Na manhã seguinte, Telles jĂĄ estava fora da direção do DGH. Mas a pressão sobre NĂsia aumentou, durante reunião ministerial tensa, em que Lula a questionou sobre o assunto.
Até o fim do dia, a notĂcia de que Helvécio havia sido exonerado jĂĄ circulava – confirmada na terça.
Em seu lugar, tanto na SAES quanto no ComitĂȘ Gestor, fica Nilton Pereira, atualmente diretor do Departamento de Atenção Hospitalar, Domiciliar e de UrgĂȘncia, interino.
HĂĄ rumores de que NĂsia indicarĂĄ o sanitarista Adriano Massuda para ocupar o cargo.
Mas o que fazer para desatar todos esses nós? Em entrevista à Globo News, o ex-ministro da SaĂșde, José Gomes Temporão, defendeu as medidas tomadas por NĂsia e Telles para a centralização de compras no DGH.
Mas, para ele, é pouco: "Nós precisamos ter um projeto ousado, de mudança radical".
Temporão acredita que é preciso buscar um novo modelo de planejamento e gestão, que acabe com os cargos por indicação nos hospitais, e privilegie as contratações técnicas.
Lucia PĂĄdua, servidora do Ministério da SaĂșde na ĂĄrea de vigilância em saĂșde e diretora da FENASPS (Federação Nacional dos Sindicatos de Trabalhadores em SaĂșde, Trabalho, PrevidĂȘncia e AssistĂȘncia Social), vĂȘ um ponto nevrĂĄlgico a ser resolvido, que diz respeito aos recursos humanos.
Segundo ela, hĂĄ um déficit de 10 a 12 mil profissionais na rede de hospitais federais, e não se faz concurso pĂșblico para recompor a força de trabalho desde 2010.
Isso acarreta, além da piora de serviços à população, constantes crises internas, provocadas pela enorme rotatividade de pessoal.
Boa parte dos funcionĂĄrios vive sob a instabilidade e a incerteza de contratos temporĂĄrios, algo incompatĂvel com a atividade que exercem.
"Nós somos uma rede de alta complexidade; o treinamento de um profissional é longo, demora até um ano para se completar", explica Lucia.
Por diversas vezes, nos Ășltimos anos, armou-se uma tempestade no momento em que os contratos temporĂĄrios estavam para vencer.
Aconteceu inclusive nos Ășltimos dias do governo Bolsonaro: o ministério ficou a um triz de não renovar os contratos de 500 funcionĂĄrios, que venceriam dali a um dia. Mas hoje o problema continua: em maio próximo, cerca de mil contratos vencerão, e mais outros 4,1 mil em dezembro.
NĂsia estĂĄ em tratativas com o Ministério da Gestão e Inovação em serviços pĂșblicos para a sua renovação ligeira.
"Tudo bem que é uma questão emergencial, mas a gente não pode continuar com esse método", critica Lucia, "a gente precisa realizar concurso para preencher essas vagas de forma permanente, para criar o vĂnculo necessĂĄrio. Esse é um problema sério da rede".
Ela conta que, no momento de transição do governo, os servidores da rede federal escreveram uma carta com o diagnóstico dos problemas que perduravam nos hospitais federais, e listou alguns pontos, como a defesa da manutenção da gestão pĂșblica, concurso e carreira para os servidores e o fim das ingerĂȘncias polĂticas na direção dos hospitais.
"Cargo de direção de hospital é cargo técnico de alta complexidade."
A fala de Temporão à TV vai na mesma direção.
Ele aponta para o fato de que o Ministério da SaĂșde tem papel importante na resolução dos problemas dos hospitais federais, mas não é o Ășnico responsĂĄvel.
O ex-ministro também chama a atenção para o enorme problema que é a precarização da força de trabalho na rede – e ressalta: abrir concursos pĂșblicos não depende de NĂsia.
"Não estou vendo esforço do governo como um todo para apoio do Ministério da SaĂșde, para superar esse quadro dramĂĄtico", lamenta.
Mas Temporão tem "total confiança" em NĂsia Trindade, e em sua "grande disposição para enfrentar essa questão".
Lucia PĂĄdua crĂȘ que Lula deu uma sinalização importante à ministra, de que as coisas precisam mudar.
Para a servidora, abre-se a possibilidade de que "as unidades possam ter uma gestão técnica, profissionalizada, com participação dos servidores e usuĂĄrios", e também "que seja realizado concurso pĂșblico para encerrar esse ciclo de precarização do trabalho, e que finalmente os servidores sejam contemplados com um plano de carreira que os valorize e dĂȘ dignidade".
Fonte: Da Redação