Na abertura da reunião de chanceleres do G20 no Rio de Janeiro, o primeiro encontro ministerial da presidência do Brasil à frente do grupo, o chanceler Mauro Vieira fez um discurso no qual reiterou a pressa para reformar instituições multilaterais, como a ONU, criada no pós-Segunda Guerra Mundial, e que hoje encontra dificuldades para enfrentar e evitar crises. A pauta não é nova no Itamaraty, mas como apontaram especialistas ouvidos pelo GLOBO, a presidência do G20 e o momento atual, com guerras na Ucrânia e em Gaza, abrem caminho para pressionar por mudanças urgentes.
— As instituições multilaterais não estão devidamente equipadas para lidar com os desafios atuais, como demonstrado pela inaceitável paralisia do Conselho de Segurança em relação aos conflitos em curso. Esse estado de inação implica diretamente perdas de vidas inocentes — disse Mauro Vieira. — Sem paz e cooperação, será extremamente difícil alcançarmos a prometida mobilização em larga escala dos recursos necessários para enfrentar as ameaças existenciais que enfrentamos, em particular o combate à pobreza e à desigualdade e a proteção do meio ambiente.
Flavia Loss, professora de Relações Internacionais da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), destaca o grande número de conflitos em andamento no mundo — 170, segundo Vieira —, o que serve como fator para a pressa do Brasil sobre as reformas.
— O cenário internacional que estamos vivendo exige ações rápidas e até enérgicas, no sentido de que é necessário ter uma solução — disse. — Se pegarmos o histórico do G20, ele surge em meio a uma certa pressa por causa da crise financeira de 2009, que é quando ele se torna um bloco formal. Já havia problemas imensos para resolver, e essas crises se aprofundaram, incluindo a crise climática e as guerras.
Para Paulo Velasco, professor de Relações Internacionais na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), esse tom corresponde à tradição do Brasil de buscar mudanças no modelo de governança global, com maior representatividade.
— De certa maneira, ele (Mauro Vieira) culpa as nações que já estão em posição de destaque de fazerem corpo mole, ou de fazerem algum tipo de resistência, ou de efetivamente não contribuírem para um avanço nessa esfera, nessa transição — disse Velasco ao GLOBO. — O sentimento é de urgência máxima, e já se perderam décadas nesse debate. Desde o fim da Guerra Fria havia uma constatação muito óbvia de que as instituições multilaterais estavam anacrônicas.
Ao ocupar a presidência rotativa do G20, o Brasil também se apresentou, como opinou Tanguy Baghdadi, professor de Relações Internacionais e criador do podcast Petit Journal, não apenas como um ator que aponta problemas, mas como alguém que quer resolvê-los.
— O Brasil diz que está disposto a conversar, que está preparado para isso, mas que as instituições multilaterais não estão prontas. E é uma crítica bastante incisiva sobre a necessidade de uma reforma, na qual ele apresenta o Brasil como um agente dessa reforma mais ao lado da solução do que ao problema — afirmou
Multilateralismo 'defasado'
Baghdadi aponta a ênfase dada por Mauro Vieira ao aumento dos gastos militares: na fala, o chanceler apontou que quase US$ 2 trilhões são destinados anualmente ao setor de Defesa, enquanto os valores destinados ao combate à pobreza e às mudanças climáticas — outras duas prioridades da presidência do Brasil no G20 — mal chegam a 5% desse valor.
— O recado que ele passa é que o multilateralismo criado em 1945 está defasado. Ele está perdendo para as armas. As instituições multilaterais deveriam ter a capacidade de fazer com que as armas se tornassem obsoletas, e no final das contas não é isso que tá acontecendo — disse.
Baghdadi afirma que, além das já conhecidas demandas de ampliação do Conselho de Segurança, as reformas pretendidas pelo Brasil são mais amplas e, de certa já maneira estão acontecendo, mas no passado foram motivadas principalmente por crises, como ocorreu a de 2009.
— O que o Brasil pede é que as reformas se intensifiquem, para que elas sejam mais pensadas, mais estruturadas, e que não venham apenas em um momento de crise — opina. — As reformas precisam ser perenes, e essa é uma postura da diplomacia brasileira. O Brasil tem uma postura que a gente costuma chamar de reformismo soft, não é uma revolução global nas instituições, mas são reformas que tem que acontecer de maneira continuada.
A fala de Mauro Vieira coincide com pressões, especialmente nos países ricos (e presentes no G20) para a elevação de gastos com Defesa. Na semana passada, a Otan, principal aliança militar do Ocidente, celebrou que, em 2024, 18 de seus membros atingirão a marca de 2% do PIB destinados a Defesa, valor impulsionado pela guerra na Ucrânia e pela percepção da ameaça vinda da Rússia. Nos EUA, já em meio à campanha presidencial, o republicano Donald Trump disse que, se eleito, não agirá mais para proteger os europeus em caso de agressão externa — a menos que eles elevem seus gastos militares.
— Hoje vemos o Sul Global, sobretudo o Brasil, liderando um discurso sobre gastos menores com armas em favor de temas urgentes, como a fome e a pobreza. Ao mesmo tempo, existe a liderança dos Estados Unidos dizendo ser necessário gastar mais dinheiro com armas. Não não deixa de ser uma contradição, que sempre permeia as relações internacionais, que marca as assimetrias profundas em termos de interesse e divisão de mundo — diz Velasco.
Ainda sobre o Sul Global, que teve exemplos de sucesso no campo da paz e da segurança, como no caso da desnuclearização, citado por Vieira, Flávia Loss acredita que o Brasil está usando a presidência no G20 para se apresentar e firmar como uma liderança confiável de nações que, hoje, não têm tanta voz no cenário internacional.
— O Sul Global foi muito fortalecido dentro do G20 com a entrada da União Africana, isso dá um peso enorme para essa população que ainda não consegue acessar organizações internacionais, inclusive a ONU, resolver conflitos e problemas — afirmou Loss.