O álbum foi produzido em um contexto de genocídio negro e periférico pelos agentes do Estado, ilustrado pelos casos do Massacre do Carandiru (1992), a Chacina da Candelária (1993) e a Chacina de Vigário Geral (1993).
Você conhece o contexto social e histórico da obra? Nesse texto da Politize, você vai entender um pouco mais sobre a importância do a?bum lançado em 1997. Vem com a gente!
Como Sobrevivendo no Inferno parou no vestibular
Para quem não está familiarizado, o termo "genocídio" é definido como "atos cometidos com a intenção de destruir, total ou parcialmente, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso". Ao se pensar na situação do Brasil, esses crimes continuam a ocorrer com a juventude negra, já que a cada 23 minutos um jovem negro é assasinado no país.
Em 2020, o disco se torna obra obrigatória no vestibular da Unicamp, "não apenas por se tratar de um álbum musical que nos ensina ritmo e poesia, mas também por nos trazer raps cujas letras nos ensinam história, política, racismo, exclusão social e a luta por direitos".
Para além dos dramas diários, o disco também desperta o sentimento de pertencimento e orgulho nas quebradas ao ressaltar que tais territórios não se resumem apenas a pobreza, violência e assistencialismo. É, também, um espaço de cultura, afeto e potência.
Um retrato da realidade
O grupo é formado pelos artistas Mano Brown e Ice Blue (das periferias da zona sul de São Paulo) e Edi Rock e KL Jay (da zona norte). O disco foi produzido principalmente no Capão Redondo, distrito considerado um dos lugares mais perigosos do mundo nas décadas de 80 e 90.
Como dito no início do texto, três eventos foram decisivos para a criação do álbum. O primeiro foi o Massacre do Carandiru, que ocorreu em 2 de outubro de 1992, quando a polícia militar de São Paulo assassinou 111 presos. Essa é considerada a mais violenta e brutal ação da história do sistema prisional brasileiro.
A Casa de Detenção de São Paulo foi desativada e parcialmente demolida em 2002 dando lugar ao Parque da Juventude. Uma das músicas centrais do álbum é a música "Diário de um Detento", escrita em parceria com Josemir Prado, ex-detento que sobreviveu à chacina e escreveu relatos da sua vivência dentro da própria prisão.
A Chacina da Candelária ocorreu na noite de 23 de julho de 1993, quando dois carros com placas cobertas pararam em frente à igreja da Candelária, localizada no centro da cidade do Rio de Janeiro, e atiraram contra 40 crianças em situação de rua que dormiam. Seis menores e dois maiores de idade faleceram.
O último evento ocorreu na madrugada do dia 29 de agosto de 1993, quando a favela de Vigário Geral, na zona norte do Rio de Janeiro, foi invadida por um grupo de extermínio formado por cerca de 36 homens encapuzados e armados, que arrombaram casas e executaram 21 moradores.
A ideia do álbum foi fazer a denúncia para que os próprios moradores das periferias se protegessem, já que o Estado estava promovendo o genocídio com grande aprovação da opinião pública.
"O que a periferia percebeu antes de todos é que esse modelo genocida de organização social, ancorado numa série de mecanismos herdados da escravidão e aperfeiçoados durante a ditadura, não se voltava apenas contra aqueles considerados "criminosos", tendo se convertido em norma geral, com aprovação quase irrestrita da opinião pública. A compreensão profunda dessas tragédias — não como meros acidentes de percurso da civilização brasileira mas como fundamentos mesmo de um projeto nacional — estará no centro de diversas mudanças ocorridas no campo cultural, que progressivamente tornaram possível o surgimento daquele que seria um dos mais importantes fenômenos culturais da história do país" – Acauam Silverio de Oliveira, na introdução do livro Sobrevivendo no Inferno.
Por conta disso, já na música de abertura Gênesis, Mano Brown fala: "Eu tenho uma Bíblia velha, uma pistola automática e um sentimento de revolta. Eu tô tentando sobreviver no inferno".
O "inferno" faz referência às favelas, territórios onde a população preta e pobre se refugiou a época da escravidão e onde esse grupo foi negligenciado pelas políticas públicas desde então.
Veja também nosso vídeo sobre a desigualdade social!
A continuação do legado dentro das universidades
"O legado de Racionais tá na rua, tá espalhado. Vocês são Racionais também", disse Mano Brown aos estudantes da Unicamp que se reuniram em 30 de novembro de 2022 para acompanhar a aula aberta com o grupo no Centro de Convenções da Unicamp.
O encontro contou com a presença de Brown, Ice Blue e KL Jay (Edi Rock não compareceu ao evento) e fez parte da disciplina "Tópicos Especiais em Antropologia IV: Racionais MC"s no Pensamento Social Brasileiro".
"No final dos anos 90, quando estávamos cercados de pesquisadores curiosos com o poder de mobilização da cultura hip-hop, nós dizíamos que era preciso entrar na universidade e contar a nossa própria história. Até porque o rap de Racionais MC"s nos ensinou a fazer isso: olhar as problemáticas sociais de uma perspectiva crítica, evidenciar a vida cotidiana a partir das experiências vividas e interpretar a realidade. Dessa forma, nós entramos", disse Jaqueline Lima Santos, professora do curso de Ciências Sociais na universidade.
No evento, os estudantes se organizaram para que o grupo fosse reconhecido com o "doutor honoris causa": distinção máxima prevista no estatuto da Unicamp.
A condecoração pode contemplar dois grupos: pessoas que tenham contribuído para o progresso das ciências, letras ou das artes, e pessoas que tenham beneficiado de forma excepcional a humanidade ou tenham prestado serviços à universidade.
A concessão agora depende da aprovação do Conselho Universitário e defende que o título seja dado a todos os membros do grupo: Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay pela "sua contribuição há mais de três décadas para o desenvolvimento crítico e registro das contradições e problemáticas da sociedade brasileira".
Ice Blue destacou que a conexão entre o rap e os estudantes negros se dá pela identificação e o compartilhamento de histórias de vida semelhantes. Muitos estudantes que participaram do ato relataram ser os primeiros de suas famílias a ingressarem no espaço acadêmico.
"O rap conta a história de cada um da periferia. De onde estiver a gente tem essa semelhança de vida de negro de periferia. A gente só relatou nossa história de vida, que reflete na vida de vocês", pontuou. "São revoltas que vocês têm, que nós também tivemos e ainda continuamos tendo. E essa revolta virou inteligência. Era uma revolta inconsequente e agora ficou mais estratégica. Agora tá mais perigosa, porque não tem só a arma e a força, tem a inteligência".
As Melhores do álbum :
Da Redação